domingo, 23 de janeiro de 2022

A PELEJA DE ZÉ LIMEIRA NO PAÍS DOS EXCLUÍDOS


Faz muitos anos, desde a primeira vez que o nome Zé Limeira baixou pelas minhas oiças. Não consigo precisar o tempo exato, mas deve ter sido em algum lugar entre a minha pré-adolescência e início da adolescência. À época, havia construído uma carrocinha de madeira e trabalhava na feira, auxiliando quem exagerava nas compras e findava precisando de ajuda pala levá-las até suas casas. Vivíamos o início do Plano Real e eu adorava as pratinhas de 25 ou 50 centavos que recebia por cada frete, a depender da lonjura da viagem.
Eram outros tempos. Eu vivia entrincheirado por detrás das serras de Santa Luzia e recebia, diariamente, a visita de dona Escassez. Aliás, como todo mundo, ali; tirando “os mandão do pudê”, claro! Acontece que, por mais tentador que fosse o vil metal, o que eu mais gostava da feira, era o teatro mambembe que se formava toda vez que apareciam emboladores, cantadores, adivinhos, cordelistas ou folheteiros. Bastava algum desses personagens aparecer pela feira que eu já ia encerrando o expediente e me posicionando para apreciar o fuzuê que os artistas aprontavam. Era ótimo!
Foi numa destas brincadeiras que topei com o nome do famoso Bardo Surrealista, Andarilho do Teixeira, Kumba das Estradas, Lampejo Psicodélico, Filosófo dos Sertões ou, como escreveu o jornalista e poeta Orlando Tejo, Poeta do Absurdo: Zé Limeira. Na ocasião, além da alcunha forjada por Tejo, lembro também de ter ouvido a expressão “verso limeiriano” saltar de alguma sextilha e correr pelo meio do povo; para o divertimento geral da plateia e o meu, em particular. Façamos uma pausa.
Preciso tentar me redimir com os ditos cantadores de outrora e com vocês que, ora, correm as vistas por tão mal engendrado texto. Aos primeiros, perdoem-me por não poder mencionar seus nomes ou, sequer, recordar seus semblantes. Quanto a estes, desculpem-me por não ter memorizado as divertidas estrofes de modo a comungá-las nesta prosa que vamos tecendo. Como sabemos, embora o tempo guarde, nos bolsos, histórias com sortimento, algumas já se perderam nos confins do pensamento, mas, felizmente, de outras tantas, tomamos conhecimento. São essas que, com esforço descomunal, vou tangendo, reconstruindo por estas linhas. Sigamos.
Nosso Preto Velho do “fôigo de sete gato”, a quem consagro respeito & devoção, chegou a este mundo no ano de 1885/86, no Sítio Tauá, Serra do Teixeira, Sertão Paraibano. Segundo a Pedagogia do Invisível, Zé Limeira teria se espichado em vida até o ano de 1954/55 quando, transgredindo e esgarçando a compreensão de existência, encantou-se em todas as estradas sertanejas por onde andam poetas mastigando versos. É de lá, do quase inalcançável ao nosso pequeno entendimento, que Zé Limeira segue bebendo a sua “zinebra”, tocando seus baiões de viola e cantando a Pavoa Devoradora com a consciência, perspicácia e ironia de quem diz: “Eu sou um nego moderno, / Foi não foi, estou pensando.”
Pois bem, vou debulhando meu rosário de “inutensílios”, no terreiro da poesia, para dizer que é preciso desfolclorizar Zé Limeira. Isso mesmo! Não me refiro a derrubá-lo do andor de devaneios poéticos que envolvem a figura mítica do poeta. Também não há mais necessidade de discutir a originalidade dos versos que fecham a sextilha “Eu já cantei no Recife / Dentro do Pronto-Socorro / Ganhei duzentos mil réis / Comprei duzentos cachorro / Morri no ano passado / Mas esse ano eu num morro!”. Se o livro de Tejo não pode atestar a autoria dos versos, há o relato do senhor Miguelzinho que, segundo o próprio, os teria memorizado quando tinha “uns oito anos” (1942/43), no meio da feira, em Teixeira. Além disso, temos o jornalista, pesquisador e poeta Astier Basílio que, desferindo um bonito golpe de misericórdia, encerra a contenda no seu “Diário de uma descoberta”; artigo publicado no Correio das Artes.
Não quero também que estes fraseados soem como intriga, despeito ou desrespeito pela trajetória de Tejo, Belchior ou, muito menos, Emicida. Definitivamente, não quero. Sobre estes últimos, não vejo grandes problemas em terem cosido os versos limeirianos às suas canções. Em se tratando de poesia em alta voltagem, esta algaravia é mais comum do que imaginamos. Acerca daquele, é certo que seu livro “Zé Limeira: Poeta do Absurdo” apresentou o cantador para todo o Brasil e, mesmo aos trancos e barrancos, o trouxe até o nosso tempo. Ainda assim, como sabemos, não deixou de corroborar para a sua folclorização e injustíssimo fuá envolvendo a sua pessoa. Nas palavras de mestre Suassuna: “Orlando Tejo não tratou Zé Limeira como um personagem histórico, tratou como um personagem.”
Fechando as cortinas desta minha toada quixotesca, desconfio que, para além da atualidade dos versos “Ano passado eu morri, Mas este ano eu não morro”, há muito mais em Zé Limeira que deveríamos prestar atenção. No rastro desse mote, finalizo com a transcrição de um pedacinho do documentário de Douglas Machado, onde o cineasta conversa com o poeta João Furiba (1918-2019), a respeito do gigantesco José Limeira. Enfim, “para que a manhã, desde uma teia tênue, / se vá tecendo, entre todos os galos”, deixo, aqui, este meu despacho na encruzilhada da poesia:

Douglas Machado
“- Diz, pelo menos, que o Zé Limeira quando sabia que tinha um cantador em dificuldade, ele sempre dava um jeito de chamar pra cantar junto com ele porque ele sabia que as pessoas gostavam muito dele e, aí, os dois ganhavam e ele sempre dividia.

João Furiba
- Ele fez muito isso. Comigo mesmo, ele fez isso.

Douglas Machado
- Em que situação, o senhor lembra, assim, com o senhor?

João Furiba
- Em Lagoa Seca, nós fizemos uma cantoria, eu tinha que mandar um dinheirinho pra casa, que eu trabalhava. O dinheiro que eu ganhava, mandava pra meus pais. Aí, eu falei com ele. A cantoria, eu não me lembro se foi, num sei se foi 10 mil reis que saiu. Foi um dinheiro bom que dava pra comprar umas três ou quatro feiras e ele não quis um tostão, me deu todinho o dinheiro. Eu mandei pra casa. Ele onde chegava, dava dinheiro as crianças, comprava coisas pras crianças, dava dinheiro as mulher, dava dinheiro aos velho. O dinheiro dele era, era, só tirava o dele e o resto ele dava todinho ao povo. Tinha essa virtude muito grande.”

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Referências:

BASÍLIO, Astier. Diário de uma descoberta. Correio das Artes, Suplemento Literário do Jornal A União, n. 10, p. 17-19, dez. 2021.
NA estrada com Zé Limeira. Direção de Douglas Machado & Produção de Gardênia Cury. [S.l.]: TrincaFilmes, 2011. 1 vídeo (90 min). Disponível em: https://youtu.be/pi149pCOkrc. Acesso em: 21 jan. 2022.
O Homem que viu Zé Limeira. Direção de Maurício Melo Júnior & Produção de Lorena Maria. [S.l.]: TV Senado, 2013. 1 vídeo (60 min). Disponível em: https://youtu.be/VIqDZvXC2Bk. Acesso em: 21 jan. 2022.
RUFINO, Luiz; SIMAS, Luiz Antonio. Fogo no mato: a ciência encantada das macumbas. Rio de Janeiro: Mórula, 2018.
TEJO, Orlando. Zé Limeira: o Poeta do Absurdo. 9. ed. Recife: Cia Pacífica, 1997.